Quando a psicoterapeuta está grávida - Ivonise Motta

Ivonise Motta
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Quando a psicoterapeuta está grávida:
um terceiro no setting
(1)

Ivonise Fernandes da Motta



Esse trabalho é fruto da experiência de, ao estar grávida, observar os efeitos da minha gravidez, tanto em meus pacientes quanto os efeitos em mim mesma e em meu trabalho com eles.

A decisão em pesquisar o tema nasceu das experiências ocorridas nesse âmbito e da observação de acontecimentos desde os mais estranhos, bizarros até os mais instigantes e surpreendentes. Ou seja, desde dificuldades que obstaculizavam o trabalho psicoterápico até revivências que traziam nova luz e possibilidades de avanço.

Quando a psicoterapeuta engravida um terceiro elemento aparece e passa a fazer parte do cenário psicoterápico quer queiramos ou não. As modificações corporais na psicoterapeuta, as previsões advindas do fato inegável que a psicoterapeuta deverá assumir novas responsabilidades ao tornar-se mãe vão gradativamente adentrando o setting psicanalítico.

Gravidez, nascimento, maternidade são aspectos centrais na vida de todos nós, seres humanos. Faz parte da história de cada ser vivências das mais significativas e marcantes ao tratarmos desse tema. Naquela época (1980-1981), pude observar o quanto a gravidez da psicoterapeuta podia trazer à tona aspectos da história do paciente que se bem utilizados poderiam ser úteis tanto ao trabalho desenvolvido quanto às vidas dos pacientes.

Ao pensarmos em desenvolvimento e constituição do psiquismo em suas várias e diferentes fases, desde antes do nascimento, desde etapas muito primitivas vividas no útero, até vivências de parto e pós-parto podemos antecipar a pertinência do tema para o trabalho que desenvolvemos em nosso dia-a-dia, quer no âmbito psicoterápico, quer no âmbito psicanalítico. Quer nas possibilidades de ganhos a níveis psicoterápicos, quer nas possibilidades de ganho a níveis de pesquisa, novos conhecimentos oriundos da especificidade e singularidade desse tema.

A revisão da literatura realizada nos anos 80 e atualizada até os anos atuais trouxe confirmação das mais interessantes: verificar que, passadas mais de duas décadas da realização da mesma, dados semelhantes foram trazidos aos encontrados naquele tempo. Um deles que gostaria de ressaltar é o número bastante limitado de trabalhos nessa área. Esse assunto traz alguns incômodos ou inconvenientes tanto para o trabalho psicoterápico quanto para pesquisa: traz novas facetas ao setting psicoterápico que não costumamos viver em nosso cotidiano clínico, isto é, um terceiro elemento presente na sala de atendimento, na relação psicoterápica, que não é apenas e tão somente uma mera fantasia, mas sim um ser que vai gradativamente tomando mais lugar e espaço entre paciente e psicoterapeuta.

Características da Investigação Realizada

Foram acompanhados 24 casos, atendidos por psicoterapeutas grávidas, cujo trabalho psicoterápico era de orientação psicanalítica. Uma das psicoterapeutas acompanhou três clientes adultas de sexo feminino. A segunda psicoterapeuta forneceu dados de sete casos, sendo cinco de clientes adultos de sexo feminino, um de cliente adulto do sexo masculino e o caso de um menino. A terceira psicoterapeuta, autora deste trabalho, acompanhou 14 casos, três de clientes adultos de sexo feminino e 11 crianças e púberes (6 meninos e 5 meninas)

Os seguintes aspectos nortearam esta investigação:

- possível facilitação e catalisação de vivências primitivas com a mãe;
- possível facilitação e catalisação de vivências referentes ao rompimento da simbiose com a figura materna, como quando nasce um irmão;
- presença inegável da sexualidade da psicoterapeuta, com possíveis interferências no processo psicoterápico.

Além de se focalizar os efeitos da gravidez da psicoterapeuta sobre os clientes, procurou-se pesquisar as repercussões que apareceram nas próprias psicoterapeutas.

Os seguintes resultados foram encontrados em relação aos clientes: sentimentos de hostilidade, inveja e ciúme; facilitação de revivescências de faltas primitivas no contato materno; facilitação de fantasias e angústias relacionadas à sexualidade genital; facilitação de vivências depressivas, revivências de abortos e irmãos mortos; facilitação de pesquisa em relação a sexualidade e ao interior feminino, vivências de rivalidade com irmãos. A gravidez da psicoterapeuta também foi utilizada por alguns clientes de maneira defensiva. Dois tipos de atuações relacionados à gravidez da psicoterapeuta foram detectados: interrupção brusca da psicoterapia, engravidar quando da gravidez da psicoterapeuta.

No tocante as psicoterapeutas encontrou-se os seguintes resultados: tendência à negação dos efeitos da gravidez na psicoterapia; superinvestimento da gravidez; sentimentos de incapacidade; dificuldades na contenção da hostilidade dos clientes.

A hipótese de que haveria facilitação de vivências bastante primitivas com a mãe foi comprovada. Hostilidade, inveja, ataques ao interior feminino, à medida que iam aparecendo, facilitaram o questionamento da própria capacidade criativa e do porquê esses clientes sentiram muitas vezes não a possuir. Aproximação ou dificuldades no relacionamento mais primitivo com a mãe foram catalisadas na transferência, o que se mostrou útil ao trabalho psicoterápico.

De uma maneira geral, a facilitação em se tentar conhecer mais as questões sobre sexo, sobre a origem da vida e sobre a morte (abortos, irmãos mortos) foi bastante proveitosa. Socialmente, a sexualidade e a morte são temas difíceis de serem conhecidos. Mesmo na psicoterapia, a morte pode apresentar obstáculos para ser trabalhada por dificuldades dos clientes ou das próprias psicoterapeutas.

Constatou-se que a gravidez da psicoterapeuta como que reafirma o processo de desilusão gradativa pelo qual passamos no curso do desenvolvimento. Reaviva a perda da simbiose materna, assim como o nascimento de um irmão o faz.

Duas clientes engravidaram durante a gravidez de duas das psicoterapeutas. A hipótese pode ser formulada se a gravidez da psicoterapeuta pode ter facilitado no resgate da própria fertilidade, na aproximação à maternidade.

Outras clientes mostraram desejos de engravidar, desejos que tinham a função de afastar o contato com determinadas angústias decorrentes de sentimentos de incapacidade de gerar, de contenção das próprias angústias, vivências de abortos, ausência da psicoterapeuta como transferência da ausência materna.

A interrupção da psicoterapia foi outro tipo de atuação cuja importância deve ser assinalada: a gravidez da psicoterapeuta levou alguns clientes a querer interromper o trabalho psicoterápico pelas revivescências facilitadas. Nos casos acompanhados, isso ocorreu quando houve acentuada hostilidade e inveja em relação à gravidez da psicoterapeuta.

A gravidez da psicoterapeuta foi utilizada como uma tela sobre a qual o cliente projetou suas angústias, fantasias, idéias e pensamentos. As revivências facilitadas apareceriam no processo psicoterápico mesmo sem essa facilitação, isto é, mesmo que a psicoterapeuta não estivesse grávida. Mas essa situação especial possibilitou uma facilitação e catalisação que podem influenciar benéfica ou prejudicialmente à psicoterapia.

A relação diádica primitiva mãe-bebê está ligada à transferência (Spitz, 1956) e ao viver criativo e o existir (Winnicott, 1975). A partir da hipótese de que a gravidez da psicoterapeuta poderia facilitar revivescências primitivas com a figura materna, a importância de desenvolver pesquisas sobre o tema fica assinalada.

Gostaria de deixar também aqui formuladas outras questões para outras investigações: porque procurar uma psicoterapeuta grávida para iniciar um tratamento psicoterápico? Não estaria a gravidez influenciando nessa escolha? Em caso afirmativo, quais influências seriam essas? Desde que a Psicanálise, além de técnica psicoterápica, é um método de investigação do inconsciente e de suas origens, esse tema confirmou ser diferenciado em possibilitar a realização de várias e diversificadas pesquisas nessa direção.

Em conclusão, esse tema por conter tantas complexidades confirma a validade da pesquisa realizada há aproximadamente 25 anos atrás e marca a necessidade de que novos trabalhos possam vir a surgir a fim de aprofundar o conhecimento adquirido. O cliente, a psicoterapeuta, a própria psicoterapia foram, são e seriam os grandes beneficiários.

Notas

1 Esse trabalho é resultado de minha dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Referências Bibliográficas

Catafesta, I.F.M. (1984). Observações de fenômenos emergentes na psicoterapia quando da gravidez da psicoterapeuta. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Freud, S. (1973). Analisis de la fobia de un niño de cinco anos. In: Obras completas (L. Lopes – Ballesteros y de Torres, trad.) (20 vol., pp.1365-440.). Madrid: Biblioteca Nueva (original publicado em 1909).
Motta, I.F. (2006). Orientação de pais. Novas perspectivas no desenvolvimento de crianças e adolescentes. São Paulo, S.P: Casa do Psicólogo.
Spitz, René. (1956). Transference: the analytical setting and its prototype. Int J Psycho Anal. 37:380-385.
Winnicott, D.W. (1975). O brincar e a realidade. (José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre, trads.). Rio de Janeiro, RJ: Imago.
______. (1979). The Piggle: relato do tratamento psicanalítico de uma menina. (Else P. Vieira e Rosa L. Martins, trads.) Rio de Janeiro, R.J: Imago.
______. (1980). Clínica psicoanalítica infantil. (Bernardo Gorsd, trad.). Buenos Aires; Paidós.


 
 
 
 
 
 
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