Algumas palavras sobre o viver criativo - Ivonise Motta

Ivonise Motta
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Algumas palavras sobre o Viver Criativo
com o olhar de D. W. Winnicott


            Ivonise Fernandes da Motta
 
“Se eu me pergunto o que meus pacientes querem de mim, eu teria de responder que eles querem que os ajude a viver”.
(Robert Rodman)
 
“O que oferecerás à morte quando ela bater à tua porta? Vou oferecer à minha hóspede a taça cheia de minha vida. Não deixarei que ela vá embora de mãos vazias. Colocarei diante dela a suave colheita de todos os meus dias de outono e de todas as minhas noites de verão. No fim dos meus dias, quando ela bater à minha porta, vou entregar-lhe tudo o que ganhei e tudo o que recolhi com o árduo trabalho de minha vida”.
(Tagore)
 
“O viver Criativo com o Olhar de D. W. Winnicott”, congresso realizado na USP em outubro de 1999 e do qual Robert Rodman fez parte, teve por logotipo ou imagem representativa a Cruz Ansata. O folheto do evento, além da imagem, tinha os seguintes dizeres: “Ankh ou Cruz Ansata é freqüentemente chamada a Chave da Vida ou a Cruz da Vida por causa do seu poder criativo. A alça é considerada como sendo o símbolo do feminino, enquanto que a forma em T é considerada o símbolo do masculino. Juntos, refletem a continuidade da Existência. Portanto, a Cruz Ansata está relacionada a criatividade do Viver. Em suas origens é um símbolo de Vida vindo do Egito, vindo do Sol. Está relacionado à Saúde e à Felicidade.”



Em vários de seus escritos, Winnicott realça o trabalho psicanalítico tendo por objetivo capacitar o paciente a ter uma qualidade de vida melhor. Uma vida melhor significando fortalecer os próprios interesses e tendências, e o sentimento de viver uma vida própria com tons e matizes que lhe são característicos.
A esse respeito, Winnicott (1986) afirma:
 
“É claro, então, que nós não estamos satisfeitos com a idéia de saúde como uma simples ausência de desordens psiconeuróticas, isto é, de distúrbios relativos à progressão das configurações do id na direção da genitalidade completa, e à organização de defesas em relação à ansiedade no relacionamento interpessoal. Nós podemos dizer nesse contexto que a saúde não é felicidade. A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimentos conflitantes, dúvidas, frustrações, assim como por aspectos positivos. A coisa principal é que o homem e a mulher sinta que ele ou ela está vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade por ação ou inatividade, e capaz de ter confiança para o sucesso e culpa pelo fracasso. Sinteticamente, pode ser dito que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou para a autonomia” (p. 27).
 
Os temas discutidos no congresso refletiram preocupações com essa abordagem do trabalho psicoterapêutico psicanalítico: “O Verdadeiro Self do Analista”; “O Olhar do Afeto e da Ética no Viver Atual”; “O Gesto Espontâneo e Criativo na Interpretação”; “A Vida Interna das Pessoas no Mundo Tecnológico”; “A Alegria e a Criatividade”.
O olhar de Winnicott para a criatividade, suas características e importância no viver humano irá discordar de seus antecessores, Freud e Klein, ao focalizar suas origens e operatividade desde o nascimento do bebê ou mesmo antes, na vida intra-uterina.
 
“Temos que dizer que o bebê criou o seio, mas não poderia tê-lo feito se a mãe não tivesse chegado com o seio exatamente naquele momento. O que se comunica ao bebê é: “Venha para o mundo de uma maneira criativa, crie o mundo; só o que você criar terá significado para você.” E em seguida: “O mundo está sob o seu controle”. A partir desta experiência de onipotência inicial o bebê é capaz de começar a experimentar a frustração, e até mesmo chegar, um dia, ao outro extremo da onipotência, isto é, perceber que não passa de uma partícula do universo, um universo que ali já estava antes mesmo da concepção do bebê, e que foi concebido por um pai e uma mãe que gostavam um do outro. Não é a partir da sensação de ser Deus que os seres humanos chegam à humildade característica da individualidade humana?”
(Winnicott, Os bebês e suas mães – págs. 89 e 90).
 
A importância do ambiente e da cultura nessa complexa trajetória, desde a dependência absoluta até a dependência relativa ou autonomia, será sublinhada ao longo de toda a sua obra.
O desenvolvimento psíquico estará baseado desde o início nas funções corporais. As vivências corporais, quer de satisfação ou tranqüilidade, quer de frustração ou excitação, levam a vivências e trocas com o ambiente, com a mãe ou aqueles que desempenham as funções maternas, e irão constituindo experiências, memórias, bases para a construção e constituição gradativa do que denominamos self. Winnicott enfatiza a importância da personalização na conceitualização do que seria saúde. Habitar o próprio corpo, o sentimento de que o corpo lhe é próprio, com limites que são gradativamente adquiridos, ou seja, noções do que está dentro e do que está fora, com a pele estabelecendo as fronteiras, são aquisições gradativas de suma importância para o bebê ou para a criança, e serão imprescindíveis na conquista de bases favoráveis para o desenvolvimento saudável. A integração psique-soma e sua manutenção vai tecendo boas possibilidades de trocas com o ambiente, no assentamento de boas bases de um desenvolvimento psíquico saudável. Para tanto, o ambiente desempenhará função importantíssima, ao propiciar condições favoráveis ou desfavoráveis à construção de boas bases de assentamento e integração psique-soma, boas bases para a personalização.
A importância de ser amado desde o início, da maneira que somos ao nascer e mesmo antes de nascer, aí incluindo-se anomalias, deformidades, deficiências, nos leva a situações bastantes complexas e com graus diferentes de dificuldades tanto para o recém-nascido quanto para a mãe, para os pais e familiares em geral. Em um dos casos apresentados por Winnicott em seu livro sobre consultas terapêuticas, o Caso Iiro, o menino tinha sindactilia (a presença de uma membrana ligando os dedos), e através do trabalho realizado com Winnicott foi revelado o quanto era importante para o menino a certeza de que seria amado como ele era, incluindo sua deficiência.
A esse respeito, diz Winnicott:
 
“Aquilo a que o menino tem de poder ajustar-se é a atitude da mãe e de outras pessoas com respeito à sua deformidade, e acaba por tornar-se necessário ver a si mesmo como anormal. De começo, contudo, a normalidade para a criança deve ser a sua própria forma e função somática. Tal como começa, assim tem de ser aceito, e assim tem de ser amado. É uma questão de ser amado sem sanções.
É muito fácil transportar estas observações para um exame das necessidades das crianças que são deformadas. Ser amado no início significa ser aceito, e constitui uma distorção, do ponto de vista da criança, se a figura materna tiver uma atitude do tipo: “Amarei você se for bom, se for limpo, se sorrir, se beber tudo”, etc. Estas sanções podem vir mais tarde, mas de começo, a criança tem um diagrama de normalidade que é em grande parte questão da forma e do funcionamento de seu próprio corpo. Pode-se pensar que certamente estas questões têm a ver com uma idade posterior, quando a criança tornou-se uma pessoa relativamente sofisticada. Não se pode negligenciar a observação, contudo, de que estas são questões dos primeiríssimos dias de vida da criança. É verdadeiramente no início que a criança precisa ser aceita como tal e beneficiar-se de uma aceitação desse tipo. Um corolário seria que quase toda criança foi aceita nos últimos estágios antes do nascimento, isto é, quando se está pronto para o nascimento, mas o amor é demonstrado em termos do cuidado físico que é usualmente, mas não sempre, satisfatório quando se trata do feto no útero. Nestes termos, a base para o que chamo de personalização, ou a ausência de uma tendência especial à despersonalização, começa antes mesmo do nascimento da criança, e é certamente muitíssimo significante, uma vez que a criança tem de ser sustentada por pessoas cujo envolvimento emocional precisa ser levado em conta, assim como suas reações fisiológicas. O começo daquela parte do desenvolvimento do bebê que estou chamando de personalização, ou que pode ser descrita como uma habitação da psique no soma, tem de ser encontrado na capacidade que a mãe ou a figura materna tenham de juntar o seu envolvimento emocional, que originalmente é físico e fisiológico”
(1994, p. 205).
 
A integração do envolvimento emocional da mãe com o cuidado físico e fisiológico irá dar a mesma direção de desenvolvimento do bebê, ou seja, a integração do psíquico e do somático. O amor materno expresso através dos cuidados físicos irá, gradativamente, criar um diálogo corporal aliado ao diálogo emocional. À medida que essa união (psique-soma) vai sendo fortalecida através das vivências diárias do par mãe-bebê, bases importantes do que chamamos saúde psíquica estarão sendo estabelecidas.
Nesse contexto, várias das assim chamadas doenças psicossomáticas teriam suas raízes em dificuldades e complicações nessa integração inicial,  que indubitavelmente podem ter repercussões as mais variadas no desenvolvimento infantil, desde patologias leves até as mais graves.
Na atualidade, os avanços no campo das ciências, inclusive das ciências médicas, têm nos dado maiores conhecimentos sobre as doenças denominadas psicossomáticas. Tanto os diagnósticos quanto os tratamentos têm sido consideravelmente ampliados, propiciando várias abordagens, inclusive a utilização de vários fenômenos culturais com essa finalidade (pintura, escultura, confecção de arranjos florais, etc...).
O acompanhamento de pacientes com severos transtornos psicossomáticos me fez visualizar a importância da integração gradativa de várias vivências emocionais do paciente para a melhora gradativa dos sintomas, sua remissão e possivelmente o conseqüente controle ou paralisação da “doença”. O trabalho com esses pacientes revelou-se árduo, difícil, principalmente no início, quando estavam presentes sintomas bastante limitadores (paralisias, dores acentuadas no corpo, bloqueios de movimentos, etc.). À medida que o trabalho psicoterápico tinha prosseguimento, aprofundando-se em vivências emocionais por vezes bastante densas, pesadas, primitivas, os sintomas físicos iam diminuindo sua força e magnitude. Estas experiências psicoterápicas com esse tipo de paciente confirmam a importância dessa integração inicial psique-corpo para a construção de boas bases de desenvolvimento psíquico.
O psiquismo ancorado no físico e a elaboração imaginativa das funções corporais são bases primordiais para as aquisições posteriores nos vários níveis do desenvolvimento, tanto emocionais quanto outros (cognitivos, motores, etc...). A esse respeito Winnicott afirma:
 
“Algumas estruturas de excitação revelam-se dominantes, e a elaboração imaginativa de qualquer excitação tende a ocorrer nos termos do instinto dominante. Um fato óbvio: no bebê, é dominante o aparelho responsável pela ingestão, de modo que o erotismo oral colorido por idéias de natureza oral é amplamente aceito como característico da primeira fase do desenvolvimento instintivo.”
 
E mais adiante:
 
“Existe uma progressão do tipo de instinto ao longo da infância, culminando na dominância da excitação e da fantasia erótica genital que caracteriza a criança aprendendo a andar, a qual já percorreu plenamente todos os estágios anteriores. No intervalo entre a primeira fase, oral, e a última, genital, há a variada experimentação de outras funções e o desenvolvimento das fantasias correspondentes. As funções anais e uretrais com as fantasias que lhes são próprias dominam de modo transitório, ou mesmo permanentemente, predeterminando assim um tipo de caráter”.
(1990, pg. 58).
 
Nessa perspectiva, a integração psique-soma já conseguida antes do nascimento e fortalecida com as vivências pós-parto, com as vivências repetidas de diálogo físico-emocional do par mãe-bebê durante os primeiros meses, ao longo dos primeiros anos de vida abrem passagem para a possibilidade de se chegar ao que denominamos “genitalidade”, que sabemos ser um complexo caminho quando pensamos em termos de desenvolvimento psíquico.
 
“O jogo ‘Sabe guardar um segredo?’ pertence tipicamente ao lado feminino da natureza humana, assim como o lutar e o enfiar coisas em buracos pertence ao lado masculino. A menina que não sabe guardar segredo não pode ficar grávida. O menino que não sabe lutar ou enfiar um trenzinho no túnel não pode deliberadamente engravidar uma mulher. Nos jogos de crianças pequenas podemos vislumbrar a elaboração imaginativa de suas funções corporais, especialmente num tratamento analítico, no qual entramos em contato muito íntimo com a realidade psíquica da criança, através de sua fala e de seu brincar”.
(Winnicott, 1990, p. 64).
 
Ao apresentar o trabalho sobre o Elemento Feminino e o Elemento Masculino em homens e mulheres em “A Criatividade e suas Origens”, Winnicott (1975) desenvolve um tema complexo porém de grande utilidade e importância aos desenvolvimentos teóricos e práticos da psicoterapia. O elemento feminino puro, estando baseado na fusão inicial com a mãe, estabelece as bases do sentimento de ser, essencial para a constituição do self. A integração entre os elementos masculino e o feminino puros estabelece as bases para a capacidade para preocupação.
A integração do elemento feminino puro e do elemento masculino puro levaria a integração do que denominamos Ser e Fazer, ou, segundo a conceituação de Winnicott, ao Viver Criativo. A dissociação desses elementos levaria a dificuldades quanto a viver uma vida criativa ou quanto à noção de que se está vivendo uma vida com valor e com características próprias. Sabemos que ao usar essas conceituações Winnicott não está se reportando à questões sobre identidade de gênero (homossexualismo, bissexualidade, heterossexualidade) e sim às questões básicas de constituição do Self.
Massud Khan, em seu trabalho “Ouvir com os olhos: Notas clínicas sobre  o corpo como sujeito e objeto” (1971), utiliza-se desses conceitos estabelecidos por Winnicott. Através de material clínico, o atendimento de uma moça em psicoterapia, Khan reflete sobre uma dissociação presente nesses elementos masculino e feminino sublinhando a importância do olhar, olhar o corpo do paciente. Ouvir as verbalizações e associações trazidas pelo paciente é algo já bastante conhecido e tratado por inúmeros ângulos da literatura psicanalítica. Porém, a utilização da linguagem corporal, o corpo com seus tons e características próprias é algo que pode passar desapercebido no trabalho com pacientes e, se bem utilizado, pode revelar aspectos fundamentais para sua compreensão.
 
“Enquanto a ouvia falar, ocorrera-me a observação de Winnicott sobre o seu paciente: ‘Sei perfeitamente que você é um homem, mas estou ouvindo uma moça e estou falando com uma moça’. Resolvi fazer uma longa interpretação. Comecei dizendo que, durante todos aqueles meses, eu andara pensando o que a fazia vir às entrevistas, e que hoje, pela primeira vez, eu via que o vínculo entre mim e ela era semelhante ao que havia entre o menino e o velho chefe patane do artigo. Relacionei, então, isto com o paradoxo na minha impressão subjetiva da sua presença física nas sessões e o que ela me contara sobre a exploração orificial do seu corpo feminino pelos outros. Que ela sempre me impressionara como uma bela pessoa, com muito pouca atração sexual para o seu modo de ser um corpo. Que agora eu podia dizer-lhe que ela era duas pessoas distintas na sua presença corporal: uma moça e um rapaz. Que ela, como objeto, se apresentava a si mesma e aos outros como uma menina; mas, como sujeito, ela era um menino, e isso ninguém ainda havia reconhecido, nem mesmo ela, que continuaria vindo a mim para tentar ajudar-me a ver esta dualidade na experiência que tinha do seu corpo, para que eu a reconhecesse e o dissesse a ela”.
(Khan, 1977, p. 291).
 
Ao prosseguir a análise do material clínico, Khan acrescenta:
 
“Voltando à minha paciente. Desde o início, alguma coisa na sua presença corporal na situação analítica me impressionara como significativo. Eu tinha a impressão nítida de estar ouvindo com os seus aparelhos do ego: ouvidos e olhos, e o que eles me transmitiam era paradoxal, se bem que não necessariamente conflitivo. Foi ao ouvir com os meus olhos que eu, espontaneamente, prestei mais atenção. Numa sessão, experimentei mesmo fechar os olhos e ouvir apenas a sua narrativa com os ouvidos. E o que ouvi foi um tranqüilo relato de bizarras e perversas ocorrências vividas pelo corpo de uma menina. Diante disso, qualquer um só poderia tachá-la – para usar o qualificativo que lhe dera seu amigo – de puta, e uma puta tola e submissa. Mas no instante em que abri os olhos e olhei, só vi um belo corpo estirado no divã, corpo que mal poderíamos acreditar ter sido jamais tocado por alguém, quanto mais imaginar que já fora penetrado por vários homens”
(1977, p. 301).
 
E conclui:
 
“Ouvir com os olhos diz respeito a conhecer o outro através da experiência visual que temos dele ou dela. Não creio que esse tipo de trabalho clínico seja possível fora de uma simpatia positiva e explícita pela pessoa do paciente e uma grande consideração pela sua presença corporal. Nestas circunstâncias, se não olharmos para um paciente e o, ou a, reconhecermos, falhamos no nosso empreendimento. A iconicidade da presença corporal de um paciente precisa ainda ser apresentada na sua gramática e na sua semântica. Mas a nossa ignorância de tal tema não nos deve desencaminhar, levando-nos a acreditar que ela ou não existe ou não é importante”
(1977, p. 304).
 
A importância do olho e do olhar no desenvolvimento psíquico foi ressaltada por vários autores, dentre os quais caberia destacar Lacan, Dolto e Winnicott.  Para eles, o olhar, e principalmente o olhar materno, teriam papel definitório tanto no que se denomina a constituição de uma imagem corporal quanto na constituição de uma identidade integrada, unificada enquanto corpo e também enquanto entidade psíquica. O estágio do espelho, definido por Lacan e Winnicott como extremamente significativos para tais aquisições, vai ser reafirmado por vários trabalhos e pesquisas desenvolvidos por seus seguidores.
Desde o início, o olhar vai constituir uma possibilidade ou não de contato humano dos mais fundamentais. Uma possibilidade de trocas as mais variadas e com tons os mais diferenciados entre o bebê e a mãe, entre o bebê e o ambiente. A esse respeito Priszkulnik (1986) escreve:
 
“Muitos psicanalistas consideram o ato do nascimento como a primeira castração que o bebê enfrenta, na medida em que, ao nascer, desprendendo-se das membranas uterinas que o envolvem por tanto tempo, e com o rompimento do cordão umbilical, separa-se irreversivelmente de sua mãe. Depois desta primeira e crucial ruptura, tem lugar uma segunda, quando ergue suas pálpebras e a luz penetra, inexoravelmente, em sua retina pela primeira vez. Podemos, então, falar desta experiência como uma segunda castração, uma vez que ao abrir os olhos, o bebê desperta para um mundo novo que terá de progressivamente apreender e organizar. Nesta perspectiva, o olho e a visão impõem um corte, e com isto uma distância, tanto quanto a cesura do cordão umbilical ou, mais tarde, o aceder à linguagem com a castração simbólica”
 (Dissertação de Mestrado – pág. 60).
 
Da mesma maneira, a mãe, ao olhar o bebê pela primeira vez, pode ver confirmadas muitas de suas expectativas – no aspecto positivo ou no aspecto negativo. Nesta última categoria incluiríamos o encontro da mãe com uma criança com problemas ou deficiências, e as múltiplas repercussões que isso pode vir a trazer no desenvolvimento psíquico do menino ou menina.
Neste contexto, a função relacional do olhar e do que alguns autores denominam “fase do espelho”, ou seja, ver o que se é na imagem refletida através do olhar da mãe, ou através do olhar de um outro, é fator inegavelmente importantíssimo na constituição do sujeito, na construção de uma identidade integrada.
A esse respeito Dolto afirma:
 
“...Paradoxalmente, as crianças que mais me ensinaram o que é um espelho, e, além disto, o que é o narcisismo primário – têm sido aquelas que precisamente não têm olhos para ver, isto é, os cegos de nascença. Estas crianças que nunca experimentaram o efeito de uma imagem visível conservando, entretanto, intacta uma rica imagem inconsciente do corpo. Seu rosto é de uma autenticidade de tal modo comovente que elas dão a impressão de deixar transparecer a imagem do corpo que as habita. (...) Isto pode parecer curioso, mas eu não hesitaria em afirmar que a imagem do corpo nos cegos permanece inconsciente bem mais tempo que nos videntes. Os terapeutas, tendo que tratar distúrbios de caráter nas crianças feridas de cegueira congênita, escutam freqüentemente a narração de histórias pontuadas de expressões referidas à vista. Os cegos dizem sempre: “Eu vejo”. E me aconteceu de lhes perguntar. “Como tu podes ver se és justamente cego?” E eles me responderam: “Eu digo que vejo porque eu ouço todo o mundo em torno de mim falar desta forma”. E eu lhes  replico: “Todo mundo diz : eu vejo; mas para significar que se entende”. Estas crianças cegas são dotadas de uma sensibilidade notável. Quando, por exemplo, eles modelam uma escultura, as mãos da figurinha representada tomam um lugar preponderante. Acontece-lhes de traçar desenhos não sobre o papel, mas gravá-los sobre a massa de modelar colocada sobre o plano. E elas obtêm, assim, com a mesma maestria que as crianças que enxergam, verdadeiras imagens do corpo que se projetam em seus grafismos. Ora, em suas esculturas, o talhe das mãos é bem maior que nas modelagens dos que vêem; a razão disto é muito clara; é com as mãos que eles vêem, é nas mãos que eles têm seus olhos. Vocês entendem por que os desenhos são mais gravuras que traçados gráficos. É muito interessante analisar uma pessoa privada de um parâmetro sensorial, porque, tanto quanto o sujeito da linguagem, ela deve reorganizar a simbolização dos outros parâmetros. Neste caso, o psicanalista se dá conta de que ele polariza sua escuta sobre o parâmetro sensorial ausente, enquanto este mesmo parâmetro passa despercebido nas circunstâncias comuns da análise”
(1991, ps. 35 e 36).
 
Dolto ressalta também a importância da participação e da linguagem do outro para a constituição da imagem do próprio corpo: a imagem do corpo refletida no espelho por ele próprio não seria suficiente para favorecer tal integração...
 
“...porque é decididamente uma prova. Eu penso em uma criança que, de repente, vê surgir uma imagem refletida num espelho que até então ela não observara; as crianças são sempre extremamente sensíveis ao impacto repentino de qualquer coisa. Neste momento, ela se aproxima com alegria do vidro e exclama, toda contente: “Olhe bebê!” Depois, ela brinca e termina por bater com a testa e não mais entender. Se a criança está só no recinto, sem a companhia de alguém para lhe explicar que se trata somente de uma imagem, ela fica desconcertada. É aí que se faz a prova. Para que esta prova tenha um efeito simbolizado é indispensável que o adulto presente nomeie o que se passa. É verdade que muitas mães, neste momento, cometem o erro de dizer à criança, indicando o espelho: “Vê, isso é você”, onde seria muito simples e justo dizer: “Vê, esta é a sua imagem no espelho, assim como esta que você vê ao seu lado e a imagem de mim no espelho”. Na falta desta palavra essencial na simbolização, a criança efetuará certamente uma experiência escópica – constatando, por exemplo, que sua imagem desaparece quando ela não está mais diante do espelho e que a imagem reaparece quando ela se coloca novamente diante do espelho – mas desta experiência restará, na ausência de resposta e de comunicação, uma experiência escópica dolorosa. É uma prova muito forte para a criança, se os outros não estão no mesmo recinto que ela, diante do espelho. O outro deve estar lá não somente para lhe falar, mas para que a criança observe no espelho a imagem do adulto diferente da sua, e que descubra, então, que ela é uma criança, pois uma criança não sabe que ela é uma criança e que elas têm o talhe e a aparência de uma criança”
(1991, p. 37).
 
Desde o início da vida do bebê, portanto, o olhar será um fator constitutivo preponderante quer na saúde, quer na doença, quer nos casos de desenvolvimento favorável ou desfavorável. O olhar sempre permeando a participação de um outro, na constituição e estabelecimento de um diálogo relacional que, se bem articulado, poderá ser vitalizante e mediador de trocas afetivas fundamentais ao assentamento de boas bases de integração psique-soma, de integração a nível de identidade e de identificações.
Winnicott (1975), ao escrever sobre o papel de espelho da mãe e da família, também vai reafirmar a importância do ambiente e do rosto da mãe em refletir para a criança quem ela é (crianças que têm visão). O rosto da mãe poderá devolver à criança vários aspectos de quem ela é ou, contrariamente, quando a mãe apresenta algum tipo de patologia (depressão, narcisismo patológico, etc.) a criança terá dificuldades nos vários passos sucessivos de separar-se do ambiente objetivamente percebido. A função especular, para esse autor, também ocuparia lugar preponderante nas edificações básicas do ser.
 
“O que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo. Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e
aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali. Tudo isso é facilmente tomado como evidente. Peço que isso, naturalmente bem realizado por mães que estão cuidando de seus bebês, não seja considerado tão evidente assim. Posso demonstrar minha proposição referindo o caso de um bebê cuja mãe reflete o próprio humor dela ou, pior ainda, a rigidez de suas próprias defesas” (Winnicott, 1975, p. 154).
 
E adiante:
 
“Retornando ao curso normal de eventos, quando a menina normal investiga seu rosto ao espelho, ela está adquirindo a tranqüilidade de sentir que a imagem materna se encontra ali, que a mãe pode vê-la e se encontra em rapport com ela. Quando meninas e meninos, em seu narcisismo secundário, olham com o intuito de ver a beleza e enamorar-se, já existem provas de que a dúvida neles se insinuou a respeito do amor e cuidado contínuos de suas mães. Assim, o homem que se enamora da beleza é inteiramente diferente daquele que ama uma moça e acha que ela é bela e pode perceber o que é belo nela”
(Winnicott, 1975, ps. 155-156).
           
Gaddini, ao escrever sobre a regressão e seus usos em psicoterapia, também confirma a importância do olhar para a constituição do Self, principalmente nos primeiros estágios do desenvolvimento. O olhar seria semelhante ao contato táctil, estabelecendo ponte importantíssima e indispensável para a integração e constituição do psiquismo.
 
“Facilitar a regressão como um caminho para a progressão constitui uma inovação da técnica que tem recentemente interessado a muitos analistas. Devemos o pouco que conhecemos a respeito da técnica ao estudo dos estados fusionais do desenvolvimento inicial no processo natural de crescimento (R. Gaddini, 1987; Mahler, 1968), e à nossa tentativa de utilizá-los no tratamento, principalmente em conexão com o olhar e com os olhos da mãe. Olhar, na opinião de Ballesteros (1977), assemelha-se, para o bebê, a agarrar os olhos da mãe, como se eles fossem um seio, um objeto parcial. Também na opinião de Eissler (1978), o olhar estabelece uma continuidade concreta. E. Gaddini (1968) descreveu uma qualidade muito sensorial do olhar nos primeiros estágios, uma qualidade sensória que ainda não é uma percepção. A pergunta é: já existe um self construído ou não? No último caso, sujeito e objeto ainda são o mesmo. O olhar, neste caso, tem a ver mais com o tato e o contato táctil do que com a percepção da imagem”
(1995, p. 151).
 
Quando estamos trabalhando com regressão, com pacientes que estão passando por fases de regressão, quer por situações específicas de suas vidas (gravidez, crises, lutos, etc...); ou por revivências primitivas facilitadas pelo tratamento analítico, o olhar pode adquirir um significado de vital importância. Nessas fases, a recusa do paciente no uso do divã ou sua insistência em ficar sentado para manter contato do olhar com o analista poderia ser indicativo de uma necessidade psíquica presente, e não de uma possível resistência ao tratamento psicanalítico.
A integração do elemento feminino puro e do elemento masculino puro, aspecto básico para a constituição do que denominamos Viver Criativo, teria portanto nas experiências iniciais de fusão com a mãe, de diálogo corporal e emocional integrados com a mãe, as bases primordiais para a sua construção e desenvolvimento favorável.
O congresso que organizamos em outubro de 1999, do qual fez parte Robert Rodman, teve por objetivo trazer à tona esses aspectos antes mencionados: o viver criativo e o olhar segundo uma conceituação winnicottiana, com o sentido de abrir novos diálogos e perspectivas na direção do significado da Cruz Ansata ou Ankh, isto é, na direção de uma qualidade de vida melhor, de saúde, de possibilidades de desenvolvimento, de “felicidade”.
Para finalizar, gostaria de citar a participação de Robert Rodman na “Fundação Squiggle”, instituição que visa promover e desenvolver estudos decorrentes das contribuições de D. W. Winnicott, e que em última instância teria objetivos semelhantes aos que nos orientaram na organização das conferências brasileiras de Robert Rodman.
André Green, também um dos patronos da Squiggle Foundation, em uma conferência proferida em 6 de abril de 1997, comemoração do aniversário de 25 anos de “O Brincar e a Realidade”, traz vários aspectos instigantes para serem discutidos sobre seu trabalho com o negativo e as idéias de Winnicott. Autor de tantos outros trabalhos de destaque, dentre os quais citaria suas conceituações sobre a “mãe morta”, Green nos convida a pensar sobre vários paradoxos dessa ordem e a obra de Winnicott.
 
“...O homem pré-histórico fez todo tipo de desenhos em suas cavernas: pinturas com os dedos, representações de mulheres com seios fartos, animais selvagens, mamutes, rinocerontes, leões etc. Mas em algumas partes dos tetos das cavernas havia outras representações: o que os historiadores chamam de mãos negativas.
Para representar as mãos, o homem pré-histórico usou dois artifícios. O mais simples era colocar tinta na mão e deixar uma impressão na parede, deixando um traço direto dela. O segundo era mais indireto e sofisticado.
Aqui, a mão que desenha não desenha a si mesma. Em vez disso, colocava-a nas paredes da caverna, espalhando as cores à sua volta. Então, a mão se afasta da parede e uma mão não-desenhada aparece. Esse poderia ser o resultado da separação física do corpo da mãe.
O homem pré-histórico não esperou por nós para saber o que significa o negativo”
(2003, p. 86).
 
As possibilidades de vitalização ou desvitalização que nosso trabalho pode conter são indubitavelmente aspectos centrais de nossos diálogos e pesquisas. A integração do elemento feminino puro e do elemento masculino puro representando a integração do self, de um self sentido como verdadeiro, e portanto possibilitando o viver criativo e o sentimento de que viver vale a pena, faz parte dos objetivos que norteiam todos os nossos trabalhos, quer clínicos, quer acadêmicos. Por isso mesmo a escolha da Cruz Ansata ou Ankh como símbolo das conferências realizadas em 1999.
Quando da realização do “Viver Criativo com o Olhar de D. W. Winnicott”, não poderíamos antever o que ocorreria em 11 de setembro de 2001. Muito do que havíamos discutido nos congressos anteriores, dos perigos e malefícios da tecnologia e da modernidade, fez se violentamente presente quando da destruição das Torres Gêmeas nos Estados Unidos. Muito de nossa vulnerabilidade e fragilidade surgiu como verdade incontestável. Restaram nossos esforços na continuidade de resgatar cada vez com maior peso a importância do uso dos avanços tecnológicos ou da assim chamada “modernidade” a favor da saúde, a favor de trabalhos preventivos e de facilitação do desenvolvimento psíquico em bases consistentes. Caberia também lembrar que no primeiro congresso que organizamos, do qual Robert Rodman fez parte (1997), utilizamos como logotipo ou marca do evento a conhecida pintura de Michelangelo na Capela Sistina, “A Criação”: duas mãos quase se tocando, numa alegoria do homem sendo criado por Deus.
Essa sempre foi nossa direção e esse é o caminho que objetivamos continuar trilhando. E para concluir, pediria emprestadas algumas palavras de Winnicott escritas em “O Brincar e a Realidade”:
 
“Quando olho, sou visto; logo existo.
Posso agora me permitir olhar e ver.
Olho agora criativamente,
e sofro a minha apercepção,
e também percebo.
Na verdade,
protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto (a menos que esteja cansado)”.

Referências Bibliográficas
Dolto, F. e Nasio, J. (1991) A Criança do Espelho. Trad. Alba M. Almeida. Porto Alegre, Artes Médicas.
Gaddini, R. (1995) “A Regressão e os seus usos no tratamento: Uma Elaboração do Pensamento de Winnicott.” In: Giovacchini, P. (org.) Táticas e Técnicas Psicanalíticas D. W. Winnicott. Trad. José Otavio de Aguiar Abreu. Porto Alegre, Artes Médicas.
Green, A. (2003) André Green e a Fundação Squiggle. Trad. Magda Lopes. São Paulo, Roca.
Khan, M. (1977) Psicanálise: Teoria, Técnica e Casos Clínicos. Trad. Gloria Vaz. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
Laplanche, J. & Pontalis, J. (1983) Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo, Martins Fontes.
Priszkulnik, L. (1986) Jogo e Ilusão: O Olho, A Visão, A Linguagem. Dissertação (mestrado). Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, S. P.
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