A Psicanálise do século XXI - um momento de reflexão - Ivonise Motta

Ivonise Motta
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A Psicanálise no Século XXI – Um Momento de Reflexão




Ivonise Fernandes da Motta
 
As novas conquistas advindas da tecnologia têm mostrado efeitos benéficos nos mais variados campos das ciências e da vida humana. As mudanças e conseqüências estão cada vez mais presentes em nosso dia-a-dia. A era da informática, a Internet, os celulares invadem nosso cotidiano nos mais diferentes setores. A aceleração da velocidade nos traz muitas vantagens, incluindo a comunicação, que nos é bastante facilitada pelos mais modernos recursos tecnológicos colocados a nosso dispor.
A comunicação nos dias atuais é vital pelos mais diversos ângulos em que possamos analisar o viver. Porém, ao lado da facilitação e velocidade dos meios de comunicação, sofremos força contrária em nossas vidas quando focalizamos apenas valores como eficiência, resultados, produtividade, etc...
Ao mesmo tempo em que rapidamente podemos ter tantas informações sobre tantos e diferentes setores de nosso mundo, por vezes a comunicação com o que costumamos denominar mundo intrapsíquico ou a comunicação mais íntima com um outro ser pode ser dificultada pelas tendências tecnológicas da atualidade.
Concomitante à valorização dos resultados rápidos, sinais instigantes surgem denunciando antíteses e paradoxos. Tratamentos médicos alternativos oriundos de diferentes culturas ganham peso (massagens, yoga, florais de Bach, etc.); religiões as mais diversas ganham ascendência, mostrando que o ser humano busca algo diferente ou algo além da satisfação imediata de necessidades e desejos.
Marca indelével de nossos tempos foi o 11 de setembro de 2001. Ruptura de muitas de nossas crenças de segurança, de indestrutibilidade e proteção, conseqüências possíveis ou desejáveis dos avanços gradativos da moderna tecnologia. A destruição das Torres Gêmeas nos Estados Unidos da América denuncia nossa vulnerabilidade em um universo sobrecarregado de conquistas, vantagens, facilidades, que os sucessivos ganhos tecnológicos trouxeram.
No último congresso que organizamos e do qual fez parte Robert Rodman, “A Psicanálise no Século XXI – Um Momento de Reflexão”, procuramos abordar algumas das questões acima mencionadas. Para ilustrar tal panorama, recorremos a fragmentos de Arthur C. Clarke. Em “Um Dia na Vida do Século XXI”,[1] descreve ele uma sessão psicanalítica com características e tendências da moderna tecnologia, ou o que nós poderíamos prever ou imaginar nessa direção.
 
“TI343: Sua aparência está boa. Como se sente hoje?
Alma m.:
Bem, eu acho. Não sei se são as drogas – estou tomando Halcyon, que parece nome de ilha do Caribe – ou a mnemoterapia. Estou mesmo obcecada. Achei uma meia de Karl na minha gaveta hoje e não tive um ataque de choro. Só notei seu cheiro. Pena que Abelardo e Heloisa não tenham podido fazer testes de receptores globais com o Dr. Woszniski.
TI343: agora que sabemos que o amor não correspondido é um distúrbio químico, o cliente pode recuperar-se de um grande relacionamento em uma ou duas semanas. antes levava anos.
alma M.:
É, minha tia Rachel foi abandonada no altar em 1987 e nunca se recuperou. Ela ouvia vozes que lhe diziam que o mundo ia acabar no segundo milênio. Deve ter ficado decepcionada no réveillon do ano 2000, quando a festa começou na Times Square e o apocalipse não aconteceu, e ela ficou com uma pilha de panfletos encalhados.
ti343: E você, ouve vozes?
alma m.:
Ora! Fui vacinada contra esquizofrenia quando era criança. Só ouço vozes quando quero.
ti343: quando você quer?
alma m.:
Agora você repete tudo, como papagaio? Ah, é isso mesmo, é o programa rogeriano. Eu gosto da terapia rogeriana; é como um efeito de eco. Quero dizer, é claro, as alucinações controladas, as fármaco-fantasias, as divagações fabricadas, especialmente as vozes extraterrestres que às vezes a gente ouve quando toma os compostos de triptamina. Mas eu, pessoalmente, prefiro os intensificadores sensoriais, os empatógenos e os compostos introspectivos.
ti343: Por que isso?
alma m.:
Bem, o Dr. Hurley – você sabe, o eletrojunguiano – realizou testes de Rorschach com eletroencefalogramas e Wang Worldview Inventores comigo e disse que tenho um Circuito de Jeová hiperativo. Isso se relaciona com costumes tribais, tabus e deuses punitivos e paternalistas, etc. Os compostos supramundanos às vezes provocam meus programas de paranóia. Pego uma porção de deuses irados e alienígenas sinistros. Para mim é melhor ficar na faixa do biográfico, da regressão cronológica padronizada, lembrança do nascimento, talvez algum tipo de criação de arquétipos de nível inferior.... Ah, por falar nisso, tive um sonho incrível a noite passada.
ti343: você gostaria de passar o seu registro de sonhos?
alma m.: O
k. Sonhei que tinha morrido e no meu velório ninguém se lembrava do meu nome. O pastor disse: “Nossa querida falecida, de cujo nome não me lembro...”O que é muito irônico, pois meu nome é exatamente Alma. Pelo menos a alma deveria sobreviver, você não acha? Bom, e Karl fez o elogio fúnebre e disse: “Ela era mãe e esposa devotada, blablablá.” Mas, é claro, não sou casada, nem tenho filhos...
ti343: O que significa esse sonho para você?
alma m.:
Não sei bem. Acho que fui uma esposa e mãe devotada – para Karl. Agora isso já era.
ti343: e no seu velório ninguém se lembra de seu nome.
ALMA M.: É. E
por falar nisso, minhas sessões de mnemoterapia estão indo muito bem. Estou fazendo um PsicoSim forte para modificar todo o programa Karl. Estou de volta a 2016 agora, e modifiquei o modo como nos conhecemos, como nos apaixonamos, como reagi.... Sinto-me como uma pessoa diferente. Talvez seja por isso que meu antigo eu morreu no sonho. E, por falar nisso, não acabei de contar meu sonho.
ti343: Por favor, continue.
alma m.: B
om, depois de certo tempo o velório se transformou num casamento – você sabe como são os sonhos. Eu era uma das damas de honra, mas não conseguia achar meu buquê. Pensei: “Ah, meu Deus, fui deflorada. Eram lírios-do-vale, capuchinhas, credêndios.” Era isso que eu estava pensando – credêndios. Existe essa flor?
ti343: (p
ausa para verificação de dados) não, não existem credÊndios. deve ser aquilo que se chamava lapso freudiano – um erro interno de processamento de informação. credêndio em lugar de crédulo, talvez?
alma M.:
Deve ser isso aí.”
 
A ficção escrita por Arthur Clarke, além de utópica, é reveladora ao trazer à tona vários desejos ou idéias manifestos nessa passagem: resultados rápidos (amor não correspondido é um distúrbio químico – cura em uma ou duas semanas); vacinas contra graves distúrbios mentais (esquizofrenia, paranóia); mudanças vertiginosas de personalidade e identidade fácil e rapidamente obtidas.
A diminuição da dor psíquica e da presença de conflitos psíquicos também mostra algumas das direções marcadas em seu texto. Seria desejável que conseguíssemos, com o progresso de conhecimento científico, tal estado mental. Mal-entendidos teóricos também aparecem: terapia rogeriana é apenas uma repetição mecânica de frases ditas. Ou tantos outros mitos conhecidos de outras abordagens psicoterápicas, inclusive as psicanalíticas. Todos nós conhecemos os inúmeros jargões ou trocadilhos existentes sobre o divã.
Miragens como as descritas nos últimos trechos dessa passagem revelam o desejo por mudanças rápidas de identidade, mudanças no próprio histórico percorrido pela personagem, que poderiam ser apagadas ou ‘deletadas’, usando a linguagem dos computadores.
A comunicação torna inegável quanto desses desejos estão presentes e operantes nos dias atuais, corroborados pelas facilidades tecnológicas que poderiam nos levar muitas vezes a acreditar que isso até seria possível. Doce ilusão ou contradição. À medida que nossos conhecimentos são aprofundados pelas múltiplas pesquisas realizadas nas últimas décadas, cada vez mais temos a confirmação do longo e árduo trabalho a desenvolver para realmente conseguirmos mudanças consistentes e estáveis no plano psíquico, trabalho necessário para “superar crises”, para efetuar mudanças significativas e estruturantes em vários aspectos de nosso viver.



O logotipo ou a imagem representativa do Congresso “A Psicanálise no Século XXI: Um Momento de Reflexão”, composta por várias fotos, ilustra passos marcantes do ponto de vista histórico do século passado ao registrar aspectos dos paradoxos e controvérsias já mencionados.
As Torres Gêmeas do World Trade Center, ruínas do nosso tempo, são marcas concretas de nossa vulnerabilidade e impotência diante da utilização dos avanços tecnológicos para a realização de atentados terroristas. O progresso das ciências funcionando para a destruição. Novas vacinas, novos remédios nos orientam para o uso do conhecimento científico em direção oposta à anterior, isto é, a favor da vida e da saúde. Sabemos as mudanças radicais que a descoberta e o uso da penicilina trouxeram ao mundo. E de várias outras substâncias que evitam catástrofes, epidemias, sofrimento....
O advento de novos medicamentos trouxe também efeitos poucos desejáveis. As promessas de alívio milagroso de vários padecimentos humanos venderam e vendem ilusões perigosas. Vivemos a era das drogas com seus anti-depressivos e tantos outros chamados “antídotos” de várias “doenças” ou “padecimentos humanos”.
Freud e Winnicott não poderiam faltar na imagem marca desse congresso. O surgimento da Psicanálise e sua ampliação tiveram por conseqüência mudanças nos hábitos mais cotidianos de nosso viver. Mitos sobre o paraíso que seria a infância foram desfeitos, revelando a importância dessa etapa para a possível constituição de bases firmes para a saúde e o desenvolvimento psíquico. Freud, demonstrando a presença da instintividade desde os primórdios da vida da criança, e Winnicott, trazendo à luz a importância do ambiente e suas vicissitudes no complexo caminho em direção à maturidade.
As guerras prosseguem em sua destrutividade em várias regiões do nosso planeta. Assistimos cenas dolorosas nos noticiários, em documentários, imagens de guerras diferentes em tempos e lugares os mais diversos. A célebre foto do beijo, marca do final da Segunda Grande Guerra, “And the War Said Good Bye”, presentifica nossos desejos ou possível sonho de que poderia haver um final para as guerras.
Avanços tecnológicos repercutiram na indústria automobilística, nos meios de transporte, nos meios de comunicação. São marcas indeléveis do século passado e que continuam seus avanços no século atual.
A revolução sexual, que pudemos acompanhar desde o advento da pílula anticoncepcional e tantas conseqüências resultantes, ao lado das modernas técnicas de inseminação artificial, de concepção e dos “remédios” que alteram o comportamento sexual, marcam mais uma vez os paradoxos e contradições de nosso tempo. A foto de Marilyn Monroe registra esse aspecto.
Uma época e um mundo com ângulos tão conflitantes trariam cada vez mais novos desafios e questões ao estudioso do psiquismo. Os conhecimentos e sua ampliação oriundas da psicologia e da psicanálise alargaram territórios, possibilitando seu uso não apenas nos mais variados setores da saúde mas também em outros campos que regem as relações sociais, legais, culturais.
Sentir-se real, sentir que a vida vale a pena é uma conquista reveladora da constituição do que Winnicott denominou ‘Verdadeiro Self’. Nesse contexto, a cultura em seus múltiplos aspectos vai gradativamente tomar mais espaço no viver, à medida que a criança vai amadurecendo, denotando saúde. A criatividade vai fazer parte significativa desse processo ou, melhor dito, o viver criativo estará sempre demonstrando a presença do “Verdadeiro Self” no viver o dia-a-dia.
 
Nesse sentido, na direção do que denominamos saúde, os fenômenos culturais podem ter um valor definitório de saúde ou doença. Podem ser utilizados na direção de facilitar a integração de aspectos dissociados do self ou poderiam ter também efeitos desintegradores ou patológicos. Teríamos possibilidades de utilização de vários fenômenos culturais (dança, pintura, música) a fim de articular possibilidades de vitalização ou que orientem o paciente para encontrar facetas distanciadas ou desintegradas de seu próprio self. Nesse mesmo contexto podemos incluir a tecnologia com todos os avanços conseguidos (cinema, televisão, rádio, computadores, Internet, celulares), a tecnologia podendo ter um efeito útil em termos de integração do self, ou conseqüências desintegradoras.
Muitas pesquisas têm sido desenvolvidas em nosso meio sobre as possibilidades culturais em facilitar a saúde ou o desenvolvimento psíquico. No Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP, o que denominamos “laboratórios de pesquisas” tem desenvolvido trabalhos nessa direção: Ser e Fazer; Apoiar; Apoias; Apoiam; Sujeito e Corpo; Chronos; Terapia Comportamental; Crianças Psicóticas; Família e Casal; LAPECRI etc.. Trabalhos com pacientes com diversas patologias ou transtornos, desde doenças degenerativas, câncer ou atrasos no desenvolvimento têm recebido vários tipos de tratamento que, além de objetivarem os ganhos psicoterápicos possíveis, visam pesquisar os alcances e limites do trabalho realizado.
Nesse contexto, vários questionamentos se fazem pertinentes quanto às diferentes intervenções que poderiam ser feitas com certos tipos de pacientes, visando um desenvolvimento psíquico favorável. Isto é, dirigir-se para um viver criativo e mais rico segundo suas próprias tendências e interesses. Nessa maneira de olhar o trabalho psicoterápico psicanalítico, a comunicação, o tipo de interpretação, o que dizer, quanto e quando, podem adquirir sentidos e lugares bem diferentes do que poderíamos denominar técnica psicanalítica clássica ou ortodoxa. Pode também levar a mal-entendidos. O que poderíamos considerar intervenção ou interpretação “superficial” ou com tendências apenas “suportivas” teriam alcance muito maior, e poderiam atingir extratos muito mais profundos do psiquismo.
Através da organização dos três congressos dos quais Robert Rodman fez parte, pudemos confirmar a importância da continuidade de nossas pesquisas e a importância da possibilidade de trocarmos idéias, resultados, sugestões sobre questões tão complexas e paradoxais.
O que denominamos “Verdadeiro Self”, “Falso Self”, “Gesto Espontâneo” e tantos outros termos comumente utilizados na literatura psicanalítica, cada vez mais podem traduzir especificidades e características que essas situações clínicas apresentam e que podem nos guiar para superar impasses clínicos por vezes de difícil acesso ou resolução.
Gostaria de finalizar este artigo citando Rodman (1999), ao afirmar em uma de suas conferências proferidas no Brasil com o nome “O Gesto Espontâneo”:
 
“Uma linha de meu próprio pensamento tem sido a de que uma parte importante da ação terapêutica da psicanálise consiste naquilo que o paciente aprende sobre a natureza profunda do analista. Da forma como eu vejo, o analista faz um esforço para ser anônimo, com várias marcas no seu comportamento advindas dessa palavra. Alguns alcançam a anonimidade tão completamente que podem gabar-se de ter executado a disciplina necessária para abrir espaço para o paciente, como ensinado por Freud, enquanto outros não serão capazes de alcançar essa condição por razões de temperamento, ou porque eles a consideram prejudicial se levada a extremos. Eu penso que há espaço para todos nós sob o guarda-chuva psicanalítico, e é melhor que haja, porque não há um tipo único de personalidade que represente a vasta gama de pessoas que executam nosso trabalho”. (pág.64).
 

Referências Bibliográficas
 
Bollas, C. (1992) Forças do Destino: Psicanálise e Idioma Humano. Rio de Janeiro, Imago.
Clarke, A. (1989) Um Dia na Vida do Século XXI. Trad. Heloísa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Dolto, F. (1984) No Jogo do Desejo: Dados Viciados e Cartas Marcadas In: No Jogo do Desejo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar (Trabalho original publicado em 1972).
Dolto, F. (1999) Tudo é Linguagem. Trad. Luvano Machado. São Paulo, Martins Fontes.
Rodman, R. (1999) O Gesto Espontâneo In: Catafesta, I. (org.) Um dia na Universidade: Dialogando com Winnicott, Klein e Lacan sobre a criança e o adolescente. São Bernardo do Campo, UMESP e Departamento de Psicologia Clínica IPUSP.
Winnicott, D. W. (1975) La comunicación y la falta de comunicación como conducentes al estudio de ciertos pares antitéticos In: El Proceso de Maduracíon en el niño.
Trad. Jodi Beltrán, Barcelona, Editorial Laia (Trabalho original publicado em 1963).
Winnicott, D.W. (1975) O Brincar e a Realidade. Trad. de José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro, Imago.


[1]
(Cap. 12 – ‘Uma Tarde no Divã: A Psiquiatria em 2019’ – págs. 217- 219)
 
 
 
 
 
 
 
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